
Os chamados “trabalhos de barracão” (termo brasileiro) e “camas quentes” – formas de exploração laboral que lembram o trabalho semisservil – tem sido denunciados em várias regiões de Portugal. Migrantes vindos sobretudo da Ásia (Nepal, Índia, Paquistão), do Leste Europeu (Roménia, Moldávia) e dos países da CPLP são recrutados por redes clandestinas e submetidos a condições degradantes, com baixos salários e alojamentos precários. Em muitos casos, pagam as próprias “taxas de recrutamento” com empréstimos ou contratos “comprados”, ficando acorrentados a dívidas e ameaças.
Autoridades portuguesas confirmam que este fenómeno não se limita a um único local: embora o Alentejo (especialmente Odemira, Cuba e Ferreira do Alentejo) seja hoje o epicentro do problema, casos semelhantes surgem em colheitas sazonais por todo o país (azeitonas, castanhas no Trás-os-Montes, vindimas no Douro, apanha de cereja e morango). Em suma, é um esquema de exploração laboral generalizado, alimentado por latifundiários, empresários agrícolas e intermediários sem escrúpulos, amparados e sustentados pelo velho Estado português.
A real escala do problema
As autoridades apuraram dezenas de casos investigados, mas o verdadeiro alcance é difícil de medir. Segundo o extinto Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e a Polícia Judiciária (PJ), há atualmente trinta ou mais inquéritos policiais em curso no Alentejo relacionados com tráfico de pessoas e auxílios à imigração ilegal para fins laborais. Em 2024, a “Operação Espelho” (PJ/Évora) levou a acusações contra 14 pessoas e 6 empresas suspeitas de tráfico humano e exploração laboral em propriedades agrícolas do Baixo Alentejo. Nesse caso recente, foram identificadas pelo menos 100 vítimas de trabalho exploratório (imigrantes em regime de sem-abrigo) em cerca de 70 explorações agrícolas de Cuba e Ferreira do Alentejo.

Paralelamente, a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) encontrou 1 600 infrações laboraisnas estufas de Odemira apenas entre maio e junho de 2021 (trabalho não declarado, falta de segurança social, falhas nas condições médicas, etc.). Entretanto, o Ministério Público de Odemira conduzia cerca de 11 a 12 inquéritos por auxílio à imigração “ilegal” (leia-se: de massas indesejáveis ao velho Estado português e seus chefetes) e tráfico de pessoas naquele concelho. Desde 2018, a PJ sinalizou 134 vítimas de tráfico humano para exploração laboral no país . Esses números, no entanto, representam apenas a ponta do iceberg: estima-se que existam muitos milhares de trabalhadores em situação “análoga à de escravo” (isto é, semisservil), sobretudo na agricultura sazonal. Como observou o vice-presidente do extinto SEF, cada embalagem de legumes bonita nos supermercados “tem por detrás a miséria humana” dessa mão de obra barata.
Onde está o epicentro da exploração semisservil?
O Alentejo concentra grande parte da problemática. O Presidente da República alertou que há “várias Odemiras” espalhadas pelo país: de facto, Odemira (Beja) é um dos concelhos com maior percentagem de imigrantes em Portugal (cerca de 40% da população total segundo dados de 2020) e onde se dão situações extremas de exploração. Entre 2020 e 2022 houve até estabelecimento de “cercas sanitárias” em freguesias de Odemira devido a surtos de Covid-19 em comunidades de trabalhadores agrícolas vivendo em condições de insalubridade.
Também outras zonas rurais padecem do problema: é documentado que redes de recrutadores atuam na apanha da cereja (Região Centro), vindimas no Douro, apanha da azeitona e castanha no Norte (Trás-os-Montes) e mesmo a cultura do morango e pimento na zona Oeste (Torres Vedras). Em suma, onde há grande procura de mão de obra sazonal, adaptam-se estas “estruturas” de exploração, sejam em montanhas alentejanas ou próximo das cidades. Na verdade, trata-se de um fenómeno transfronteiriço: traz imigrantes de várias nacionalidades (Moldávia, Roménia, Colômbia, Venezuela, Marrocos, Índia, etc.) uni-los a dívidas e enviá-los ao trabalho mais barato e precário possível.
Crise sanitária, crime e desemprego
A existência dessa mão de obra barateada em massa acarreta diversas consequências negativas para as massas popuares. Do ponto de vista sanitário e de saúde pública, registra-se um quadro alarmante. O velho Estado formalmente reconhece que muitos trabalhadores, principalmente agrícolas, vivem em condições habitacionais “inadmissíveis e insalubres, com sobrelotação das casas”, criando um “risco enorme para a saúde pública”. Frequentemente, dezenas de pessoas amontoam-se em barracões ou galpões sem condições mínimas (grelhas sanitárias, água potável, ventilação), causando surtos epidémicos e doenças crónicas entre os mais vulneráveis.
Do ponto de vista da criminalidade, a exploração laboral favorece redes criminosas e trafico de pessoas, que vilipendiam as massas populares. Investigações mostram que, por trás de grande parte dos “barracões”, há tráfico humano organizado: em Odemira foram descobertas quadrilhas que transportavam imigrantes ilegais ao abrigo de falsas promessas, sujeitando-os a trabalho forçado sem qualquer remuneração. Cada caso aponta para intermediários que lucram bilionariamente em Montanhas de dívidas, lavagem de capitais e empresas fictícias. Em 2023, uma operação da PJ resultou em 78 buscas, 28 detenções e mais de 100 vítimas identificadas, numa rede gerida por estrangeiros, incluindo portugueses cúmplices. Em resumo, enquanto os trabalhadores não recebem salário algum pelo seu labor, cresce o lucro ilícito e “a escravização dos migrantes” que denunciam até os sindicatos de inspetores do extinto SEF. Ao contrário do discurso de sectores mais reacionários do velho Estado, que tenta articular imigração com segurança, os imigrantes são em grande parte vítimas, não perpetradores, da criminalidade.
Os últimos anos trouxeram à tona casos chocantes que ilustram esse quadro. Em 2020, a pandemia escancarou a exploração nas estufas de Odemira: imigrantes contagiados em massa obrigaram o Governo a isolar freguesias inteiras, revelando barracões superlotados. Em abril de 2023, as investigações da PJ/SEF em Odemira somavam mais de 30 inquéritos ligados a trabalho escravo nas estufas de frutas vermelhas. Pouco depois, em dezembro de 2023, a grande “Operação Espelho” desmantelou um cartel que traficava mão de obra do Leste Europeu, América Latina e Ásia para lavouras alentejanas; nem a falta de pagamento às vítimas – que chegava a um corte salarial de vários meses – escapou ao escrutínio.
Em 2024, denúncias da sociedade civil e de associações de imigrantes têm multiplicado alertas. O próprio jornal Expresso documentou que milhares de trabalhadores nepaleses, indianos e moldavos são arrastados de norte a sul do país ao ritmo das colheitas, controlados por recrutadores e obrigados a dívidas impagáveis. Os inspetores do SEF admitiram na altura que “o Governo tem andado a dormir” enquanto empresas seguem “em completa roda-livre, tirando um lucro desmesurado”. Em suma, o que era por vezes chamado na sombra de “cana” ou “turno em barracão” tornou-se um fenómeno nacional de exploração laboral estrutural.
Romper com as velhas estruturas sociais para deitar abaixo a semisservidão
Em Portugal contemporâneo, o “trabalho de barracão” e as “camas quentes” persistem como uma chaga social ocultada por interesses econômicos. Apesar de leis que proíbem expressamente o trabalho “análogo à escravidão”, isto (como o artigo 154-A do Código do Trabalho), nenhum monopólio explorador desse tipo de trabalho foi até hoje condenado: ou seja, o velho Estado português acoberta e tem em seu seio os seus perpetradores, sendo estas leis somente formalismos jurídicos, que nada servem ao povo. As vítimas, em sua maioria imigrantes pobres, permanecem invisíveis enquanto ricos patrões expandem lucros ilicitamente. Conhecer a realidade exata é difícil – mas as investigações, denúncias e estatísticas mínimas apontam para milhares de trabalhadores explorados anualmente.
As implicações são claras: a economia sustenta-se num regime feudal de semi-escravidão que agrava a pobreza, põe vidas em risco e arruína a economia doméstica. A luta pela abolição deste regime semisservil não é apenas dos imigrantes – é de toda a sociedade portuguesa. Afinal, nenhum ser humano é ilegal e a exploração do trabalho só serve aos interesses das classes dominantes portuguesas, que aplastam a todos das mais variadas formas. Em última instância, combater de fato o trabalho semisservil passa por derrubar a estrutura brutal que sacrifica trabalhadores para maximizar lucros, amparada nas classes dominantes portuguesas e seu velho Estado, garantindo os direitos democráticos do povo e, de forma a solidificá-los cabalmente, elevar a luta destes em uma luta pelo poder.