Reprodução: Diário Liberdade
Quase meio século depois dos grandes levantes populares de abril de 1974, a ideia de que o latifúndio português foi “desmantelado” continua a circular, propagada principalmente por setores da falsa “esquerda” oportunista e eleitoreira, na intenção de autorreivindicar um triunfo que ainda sequer foi alcançado. Não só o latifúndio sobreviveu, como está em plena expansão desde o fim dos anos 80, e compreender este facto é peça fundamental para corrigir os erros de abril e fazer cumprir as tarefas democráticas pendentes da revolução.
O latifúndio, nome dado às vastas áreas agrícolas nas mãos de poucos proprietários e onde emprega-se formas de trabalho pré-capitalistas, semisservis, sempre teve peso maior no Alentejo. Já o Norte e o Centro, historicamente, foram territórios de minifúndio, com pequenas explorações familiares. A seguir a 1974, o velho Estado português semeou a ilusão de que o poder dos grandes proprietários iria encolher, e isto de facto ocorreu por alguns momentos – não porque o velho Estado tenha feito coisa que o valha, mas principalmente pelo facto de o campesinato pobre empreender aquilo que os oportunistas vieram a nomear como “reforma agrária”. Mas, olhando para as últimas décadas, vê-se que a concentração de terra retomou seu crescimento, enquanto o número de pequenas quintas caiu a pique.
O Alentejo, território dos grandes senhores da terra
A media independente Diário Liberdade mostrou em 2013 que o Alentejo (que ocupa pouco mais de um terço da área de Portugal continental, se estendendo desde o Rio Tejo até a fronteira com Espanha) concentrava 55% da Superfície Agrícola Utilizada (SAU) do continente, embora representasse apenas 36% da produção agrícola nacional. Em 1989, esse peso era bem menor: 24%. Em contrapartida, Norte e Centro reuniam 70% das explorações (e 68% da mão-de-obra), mas apenas 46% da SAU.
No Alentejo, cada exploração tinha, em média, 67,1 hectares em 2016, quase cinco vezes mais do que a média nacional (14,1 ha). Ali, as grandes propriedades dominam praticamente tudo. Dados de 2009 mostram que as quintas com mais de 50 ha controlavam cerca de 90% da SAU alentejana, contra apenas 40% no resto do país.
Esse processo não é novo: lembra as chamadas “reformas agrárias” na América Latina do século XX que acabaram, ao médio prazo, por fortalecer os grandes proprietários em vez de os reduzir, como foi muito bem demonstrado pelas “reformas” do chefete ultrarreacionário peruano Juan Velasco Alvarado entre 1969 e 1975 – curiosamente também apoiado por setores da falsa “esquerda” oportunista e revisionista como um governo da burguesia genuinamente nacional, mas que veio a se provar mero lacaio das forças imperialistas.
Camponeses expulsos, quintas maiores
O retrato nacional comprova que entre 1989 e 2019, a fatia da SAU controlada por explorações com mais de 50 ha subiu de 53% para 69,4%. As pequenas quintas, até 5 ha, perderam metade da sua área, caindo de 18,9% para apenas 9,2% da SAU.
A área média por exploração cresceu de 8,7 ha para 14,7 ha nesse período. O número total de quintas também desabou: eram cerca de 600 mil no final dos anos 80, hoje são pouco mais de 290 mil. Resultado: quase três quartos das explorações (75,6%) têm menos de 5 ha, tornando-se inviáveis. Do outro lado, apenas 260 explorações controlam 12% da área cultivada do país.
O efeito da PAC e o peso das multinacionais
Grande parte deste cenário é explicado pelas políticas impostas pela União Europeia (leia-se imperialismo alemão e francês, principalmente alemão). Sem as ajudas da Política Agrícola Comum (PAC), o Alentejo em sua actual estrutura, seria deficitário, um prejuízo. Mas a PAC, com subsídios como o set-aside (pago para não produzir) e o Regime de Pagamento Único (sem exigência de produção) garante lucros às grandes herdades.
Em 2015, só 284 entidades agrícolas (de um universo de 13 mil) receberam um quarto das ajudas diretas da PAC no Alentejo. Não por acaso, em dez anos as sociedades agrícolas no Alentejo saltaram de 1.100 para 2.400, e a área que controlavam foi de 118 mil para mais de 740 mil hectares.
Casos como o império da SOVENA – hoje o maior produtor mundial de azeite, com olivais superintensivos e lagares espalhados pelo Alentejo – mostram como o campo português se integra em cadeias agroindustriais dominadas por grandes grupos, muitas vezes estrangeiros.
Menos cultivo, mais pastagens
Outro dado preocupante: muitas terras deixaram de ser cultivadas. Entre 1989 e 2009, no Alentejo, a área de terras aráveis caiu de 69% para 31% da SAU, enquanto as pastagens permanentes dispararam de 21% para 57%. Ou seja, terras férteis foram abandonadas ou convertidas em pastagens, degenerando o objetivo primordial da agricultura: alimentar o povo. Como consequência, vê-se o crescimento desenfreado de ultraprocessados e industrializados na alimentação portuguesa, hoje compondo mais de um terço da alimentação do português médio, para além dos índices de insegurança alimentar, que atingiram 12.5% nos últimos anos (superior à média de 8% da União Europeia).
O pouco que resta em cultivo é cada vez mais intensivo: olivais superintensivos, monocultivos de eucalipto para a Portucel/Altri, tudo dependente de pesticidas, adubos e rega. Mesmo assim, o valor acrescentado da produção agrícola cai, porque os custos crescem ainda mais rápido.
Trabalho rural cada vez mais precário
Com a concentração fundiária, o trabalho agrícola também mudou. Entre 1989 e 2009, a mão-de-obra não contratada diretamente (temporários e safristas) cresceu 170%. Hoje, grande parte da força de trabalho, na prática metade, é imigrante, muitas vezes sem direitos básicos, sujeita a baixos salários e contratos a termo, maioritariamente em condição semisservil.
O minifúndio em extinção nos Açores e na Madeira
Mesmo nas Regiões Autónomas, há sinais de crescimento do latifúndio. Nos Açores, o número de explorações caiu de 13.541 em 2009 para 9.263 em 2023, embora a área cultivada se mantenha estável. Assim, a dimensão média subiu de 11,3 para 13 ha, reflexo do desaparecimento de pequenos camponeses. A produção é sobretudo pecuária: 88% da SAU açoriana são pastagens permanentes.
Na Madeira, predominam as explorações de vinha, banana e frutas tropicais, e também aí se sente o envelhecimento da população agrícola e o abandono rural.
O latifúndio nunca foi desmantelado, ao contrário do que dizem os oportunistas e reforça o velho Estado
Os números mostram que o latifúndio português não só não foi eliminado, como proclamaram os oportunistas que quiseram reivindicar uma vitória ainda inexistente sobre os grandes proprietários de terra, ele foi reforçado pelas políticas nacionais e europeias. Menos de 2 mil grandes latifundiários concentram hoje a maior parte das ajudas públicas, enquanto 200 mil camponeses recebem migalhas.
O resultado é um campo cada vez mais desigual: grandes herdades ricas, subsidiadas e ligadas a multinacionais de um lado; e, do outro, um campesinato pobre, composto por velhos e imigrantes largados a própria sorte e recebendo o bastante apenas para assegurar sua existência e, por consequência, a sua condição semiservil.
O “desmantelamento do latifúndio” nunca aconteceu de facto. Pelo contrário, o latifúndio , após um breve “recuo”, manteve-se consolidado como regime dominante no Sul do país, aprofundando a exploração daqueles que lá vivem, principalmente os camponeses sem terra ou com pouca terra. Não seria absurdo supor que planeja ainda estender seus tentáculos ao restante do país na medida em que a desindustrialização de Portugal atinge patamares cada vez maiores. Isso levanta uma questão universal na luta de classes E isso coloca uma tarefa cada vez mais candente ao movimento revolucionário que se gesta em Portugal: a terra deve servir para alimentar comunidades e sustentar quem nela vive e trabalha, não enriquecer grandes corporações e monopólios enquanto subjuga o povo português.

1 pensado em “A falsa tese do “desmantelamento dos latifúndios” e a mistificação da questão agrária em Portugal”
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