Foto ilustrativa; imagem de suposto ataque na Fazenda Santa Carmem em Porto Velho (RO) em 2021. Foto: Arquivo Pessoal (AND)
Reproduzimos material publicado originalmente na imprensa popular e democrática brasileira A Nova Democracia.
Um vídeo circulando nas redes sociais hoje mostra a visão aérea de pessoas correndo em um latifúndio e as imagens do breu noturno com barulhos de tiros disparados ao fundo. Segundo a imprensa policial “Alô Thanos”, são registros do último ataque feito pela Liga dos Camponeses Pobres (LCP) no dia 1° de outubro contra o latifúndio “NorBrasil”, em Nova-Mutum Paraná, Rondônia. O latifundiário local é investigado por vários esquemas de grilagem, colaboração com mercenários, fraude e manipulação do Judiciário.
O veículo de “imprensa” citado, “Alô Thanos”, relatou que, “de acordo com informações apuradas pela reportagem, os criminosos”, se referindo tachativamente aos camponeses, “abriram fogo contra o galpão principal da propriedade, obrigando trabalhadores a se abrigarem”. Trabalhadores, no caso da fazenda NorBrasil, tem sido um adjetivo que se usa para designar homens que fazem a segurança do local, o que os camponeses afirmam ser pistoleiros. “O ataque ocorreu por volta das 22h, após movimentações suspeitas nas proximidades do acampamento montado pela LCP”.
“Diante da gravidade da situação, equipes do BPFRON (Batalhão de Fronteira) e da Polícia Militar de Rondônia foram mobilizadas para a região, realizando patrulhamentos intensos e ações de varredura na área rural para evitar novos ataques e garantir a segurança dos trabalhadores”, diz o veículo reacionário.
Ainda segundo o veículo citado, “o clima permanece tenso e de alerta máximo, com risco de novo confronto armado entre forças de segurança e criminosos”, se referindo aos camponeses pobres. “Moradores e produtores rurais relataram medo constante e afirmaram que os ataques atribuídos à LCP têm sido cada vez mais frequentes e violentos, atingindo diretamente a segurança das famílias e propriedades produtivas da região”, referindo-se aos latifúndios.
Já o veículo “Rondônia ao vivo”, imprensa policial e pró-latifúndio da mesma estirpe, “os invasores atiraram contra veículos e prédios da sede antes de montar um acampamento dentro da área fundiária. Até o momento, não há informações sobre feridos, mas o clima é de apreensão entre trabalhadores e moradores da região”.
O jornal “SGC”, de Rondônia, também repercutiu o acontecimento. Na página “plantão de polícia”, eles afirmam que “o ataque ocorreu por volta das 22h”. O folhetim policial também fala que “a tranquilidade de Nova-Mutum Paraná” foi rompida pelo ataque. Os camponeses pobres de Rondônia não conhecem essa “tranquilidade” de cemitério. Em 2023, Rondônia foi o estado com mais registro de assassinatos por conflitos de terra, depois de dois anos na liderança; todos foram de camponeses pobres e três deles aconteceram em Nova Mutum Paraná. O número de conflitos continuou altíssimo em 2024 e 2025.
O comandante-geral da PM, Regis Braguin, compartilhou a publicação da página “Alô Thanos” no Instagram. Contudo, a verdade sobre os fatos não está esclarecida, pois o chefe da PM de Rondônia é um conhecido defensor de latifundiários (como já provou várias vezes o jornal AND), o jornalista que repercutiu é um arauto dos policiais e o movimento camponês, a única fonte confiável de informação nesse caso, ainda não se pronunciou. As imagens, divulgadas pelo latifúndio, registram sons de disparos de armas de fogo de grosso calibre, mas não é conclusiva sobre quem dispara.
‘Ocupação consolidada’
Segundo o veículo “Expressão Rondônia”, com informações de hoje (4/11), o grupo de camponeses “permanece instalado no local e impede o acesso de funcionários e [pretensos] proprietários rurais à sede da propriedade”.
Já o veículo “Painel Político”, em matéria publicada na mesma data, afirma: “Integrantes da Liga dos Camponeses Pobres (LCP), movimento sem-terra, consolidaram a invasão iniciada em 1º de novembro no Distrito de Abunã, a cerca de 200 quilômetros de Porto Velho. A propriedade de 33 mil hectares está isolada, com acampados controlando acessos e impedindo a entrada de funcionários, produtores rurais e do proprietário, resultando em paralisação total das operações agropecuárias e prejuízos estimados em milhões de reais”. E continua: “Relatos de fontes locais e imagens divulgadas pela imprensa regional mostram que os invasores ergueram acampamentos e utilizaram armas de fogo para conter tentativas de retomada da área. Na segunda-feira (3), funcionários foram recebidos a tiros ao se aproximarem da sede, sem vítimas registradas, mas com intensificação do cerco armado. Autoridades da Polícia Militar de Rondônia (PM-RO) monitoram o local, mas a desocupação não é iminente. Além disso, pelo menos quatro tratores de grande porte foram flagrados operando internamente, abrindo estradas, construindo pontilhões e limpando terrenos para expansão do acampamento – indícios de uma ocupação planejada para duração prolongada”.
Apesar de se dizer um portal “onde a verdade encontra a opinião”, matéria do “Painel Político” apenas fornece informações confirmadas pela família de “Galo Velho” e as forças policiais, e não a versão dos camponeses.
LCP ‘terrorista’ e latifundiário ‘inocente’: um mito desmontado
O latifúndio “NorBrasil” pertence a Antônio Martins, apelidado na região de “Galo Velho”. Há anos, os camponeses pobres acusam o latifundiário de envolvimento em uma série de esquemas irregulares e defendem a distribuição de suas terras, e tem tido sucesso na comprovação. Galo Velho, por sua vez, tenta desorganizar a resistência camponesa, mas fracassa.
Segundo um relatório do “Mapa de Conflitos”, Antônio Martins é o “maior grileiro” do estado de Rondônia e usa de empresas para viabilizar a grilagem de terras públicas rondonienses. O observatório também acusa o latifundiário de atacar os camponeses pobres e causar graves impactos ao meio natural, como desmatamento, erosão do solo, queimadas e poluição de rios.
Em 2020, o Ministério Público Federal (MPF) acusou Antônio Martins de ser o líder de uma organização criminosa que conseguiu lucrar mais de R$ 330 milhões por meio da grilagem de terras e fraudes no estado de Rondônia entre 2011 e 2015.
Em 2022, a Polícia Federal (PF) afirmou ter desarticulado um grupo paramilitar rural composto por policiais civis e militares (no código penal, crime de constituir “milícia armada”). Foram cumpridos 32 mandados de prisão, cinco de busca e apreensão e um de afastamento de função pública. O jornal ANDacompanhou de perto a investigação e levantou vários indícios de que o líder da organização era Antônio Martins. O jornal Brasil de Fato também afirmou que “apurou que o principal líder da organização criminosa é o latifundiário Antônio Martins dos Santos, conhecido como Galo Velho”.
Essas acusações ocorreram meses depois de conflitos de grandes proporções entre a LCP e Galo Velho entre 2020 e 2021. Na época, o então presidente Jair Bolsonaro chegou a chamar a organização de camponeses pobres de “terrorista” e dizer que os atos supostamente cometidos pelo grupo “não iriam ficar baratos”; em outra oportunidade, Bolsonaro atribuiu à LCP a alcunha de “foco guerrilheiro, pior do que o MST”, porque “começa no campo e com certeza vai chegar até as cidades”. Segundo o procurador do MPF-RO Raphael Bevilaqua, entrevistado pelo De Olho nos Ruralistas em 2021, a classificação de Bolsonaro foi uma estratégia política para justificar mais repressão em Rondônia com a retórica de combate a uma “guerrilha terrorista”.
Hoje, o mesmo vocabulário é usado pelo comandante-geral da PM-RO, Regis Bragin e pelos jornais policialescos rondonienses. Depois de atacar várias vezes acampamentos da LCP em Rondônia esse ano – alguns dos quais coincidiram com ações de bandos pistoleiros chefiados por Gesulino Travagine Castro, um criminoso comprovado e julgado, hoje foragido –, Braguin usou das “redes sociais” para convencer seus seguidores de que há uma “guerrilha terrorista” em RO.
Herdeiro de grileiro diz que ‘não consegue mais dormir’
O sobrinho de Galo Velho, João Martins, disse ao jornal rondoniense “O Observador” que o documento do latifúndio “tem mais de 100 anos”, “é um dos mais antigos” de Rondônia e “é legítimo”. Ele não foi questionado, ou não respondeu, sobre as acusações de irregularidades ou grilagem.
O herdeiro também disse que a situação na região é grave, com a morte de quatro pessoas, entre elas o “gerente” do latifúndio e um “prejuízo que passa de R$ 100 milhões”. Em tom de lamentação, ele comenta que a violência cresceu no último mês e que não consegue mais dormir. “Eles ficam dando tiro de fuzil toda noite. A gente não dorme mais”.
