
Republicamos material disponibilizado pelo jornal democrático e revolucionário brasileiro A Nova Democracia.
Em novo relatório, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) revela que em 2024 o Brasil registrou 2.185 ocorrências de conflitos no campo, o segundo maior número da série histórica iniciada em 1985. O total é praticamente idêntico ao do ano anterior, consolidando a fase mais violenta das últimas duas décadas.
No acumulado de 45 anos, o país ultrapassa a marca de 50 mil conflitos agrários. Os dados ressaltam que a luta pela terra continua sendo a principal contradição social do país. Ao mostrar que o ano de 2024 foi um recorde no número de conflitos da atual década e que houve um início de ápice durante os governos do ultrarreacionário anticamponês Jair Bolsonaro, o documento também evidencia o papel dos sucessivos governos na manutenção da violência latifundiária no campo.

Avanço da violência e a centralidade da questão agrária
Em meio à ofensiva reacionária da extrema-direita e ao oportunismo dos governos ditos “progressistas”, o povo pobre do campo segue enfrentando a violência estatal e privada, na sagrada luta pela terra. Em 2024, os conflitos pela terra somaram 1.768 registros, maior número da década, revelando um recrudescimento que não se deu apenas por grandes ações de despejo ou grilagem, mas também por um cotidiano de cercos, perseguições e violações de direitos. Quando somadas todas as categorias, o total chega a 2.185 ocorrências, sendo superado apenas por 2023. A estabilidade nesse altíssimo patamar desmente qualquer discurso de distensão.
Ao longo dos últimos 45 anos, o Brasil contabiliza 50.161 conflitos no campo registrados pela CPT. O campo brasileiro permanece o retrato da permanência de um modelo semifeudal de propriedade, sustentado pela força e pela grilagem, como também pela velha política institucional e uma Justiça parcial a serviço do latifúndio.
O documento critica o que chama de “jurisprudência própria do judiciário para lidar com questões agrárias” e cita que “empresas de segurança e milícias armadas” se proliferam na Amazônia “impulsionadas pelo discurso armamentista pela chamada ‘segurança jurídica’”.
Ainda sobre a subserviência do judiciário aos interesses do latifúndio, o documento pontua que “a ameaça de despejo judicial, por sua vez, decorre de processos em que pretensos proprietários acionam a justiça contra pequenos ocupantes e posseiros, geralmente obtendo decisões favoráveis sem critérios rigorosos, em regra, em prejuízo dos economicamente mais vulneráveis”. E conclui: “esse paradoxo se intensifica quando a disputa envolve terras públicas ainda sem destinação definida”.
Mesmo que algumas modalidades de violência como ameaças de despejo e pistolagem tenham registrado leve queda em 2024, o relatório indica que isso não significa redução da repressão, mas sim que a violência se reconfigura. Cresce a presença de grupos paramilitares organizados, como o grupo “Invasão Zero”, e se amplia o uso da legislação para criminalizar movimentos camponeses. Ao mesmo tempo, avança a resistência popular organizada — o que força os latifundiários a adotarem outras táticas.
Outro aspecto destacado no relatório é a devastação ambiental promovida pelo latifúndio. O número de áreas desmatadas aumentou em 39%, enquanto os incêndios dispararam 113% em relação ao ano anterior. Enquanto isso, o governo oportunista de Luiz Inácio faz sua propaganda mentirosa de que os “índices de desmatamento da Amazônia estão em queda pelo segundo ano consecutivo”. Além disso, os conflitos com uso de agrotóxicos aumentaram indecentes 763%, com 17 mil famílias atingidas, sobretudo no estado do Maranhão, recordista nesse tipo de ocorrência.

Latifúndio e decadência da velha política
Quanto à manutenção da violência no campo, o relatório revela que não há qualquer diferença substancial entre o governo Luiz Inácio e os de seus antecessores. Durante a era Temer-Bolsonaro os índices já eram altos, e o atual governo de turno do PT não conseguiu (ou não quis) modificar esse quadro.
“Uma primeira constatação relevante é de que não se detecta redução significativa da violência agrária geral, exceto nos números de assassinatos”, diz o documento, ao comparar os anos do governo de Michel Temer e Bolsonaro com o período do governo de Luiz Inácio. “Ao contrário, segue aumentando o número de famílias impactadas pelos conflitos do Eixo Terra, idem para os eventos de ‘trabalho escravo’ e ‘superexploração do trabalho’; com alguma redução das ocorrências no Eixo Água, a merecer análise de impacto social.”
Tampouco se trata de omissão: o governo federal, tal como seus antecessores, vem investindo pesado na base material que sustenta o latifúndio. Os Planos Safra 2023/2024 e 2024/2025, somados, destinaram mais de R$ 800 bilhões para o “agronegócio” — o dobro de uma década do orçamento de um Bolsa Família.
Ao mesmo tempo, a atuação de grupos paramilitares rurais segue crescendo. O grupo “Invasão Zero”, mencionado no relatório da CPT, atua não só com ameaças e ataques a acampamentos, mas também com lobby político no Congresso Nacional, defendendo projetos de criminalização dos movimentos de luta pela terra. Sob essa pressão, medidas como o “PL do Marco Temporal” e o “PL da Devastação” são aprovadas — quase sempre com a conivência do Executivo.
O número de pessoas libertas de “condições análogas à escravidão” — objetivamente, servidão por dívida — caiu 40% em 2024. Mas, longe de ser boa notícia, o dado expõe outro colapso: o da fiscalização. A paralisação dos fiscais do trabalho provocou uma clara subnotificação, também segundo o relatório. A existência continua, só não foi registrada.
O judiciário também contribui para o aprofundamento da violência ao emitir liminares de despejo que, na prática, legalizam a grilagem, principalmente na região do Amazonas, Acre e Rondônia (Amacro), hoje epicentro da devastação fundiária e ambiental.

Resistência camponesa e autodefesa
Diante da escalada da violência, cresce também a resistência. O relatório registra 88 ocorrências de “retomada de terras” por comunidades camponesas, indígenas, quilombolas e ribeirinhas. A CPT destaca que a autodefesa popular se fortalece em meio ao acirramento da repressão estatal e paramilitar.
O campo brasileiro segue como palco das contradições mais profundas do país. Contudo, o relatório corrobora o entendimento de que transformação não virá por intermédio das instituições do velho Estado, e sim pela luta organizada dos pobres do campo. Se há uma saída possível, ela passa inevitavelmente pela destruição das raízes da concentração fundiária e construção de um novo modelo de vida no campo.