Foto: Reprodução/BBC
No final da tarde de 3 de setembro de 2025, o Elevador da Glória, um dos ícones mais antigos e emblemáticos de Lisboa, transformou-se no epicentro de uma catástrofe. O icónico cenário da Praça dos Restauradores foi subitamente rasgado pela violência de um descarrilamento, que se desenrolou em menos de um minuto. O acidente ocorreu precisamente às 18h04, quando a cabina n.º 1, que descia a Calçada da Glória, sofreu a rutura do seu cabo de sustentação. A falha mecânica desencadeou uma sequência de eventos que culminou numa colisão fatal contra um edifício no entroncamento com a rua do mesmo nome, próximo da Praça dos Restauradores.
A contagem de vítimas da tragédia, a mais grave em acidentes ferroviários no país desde 1986, foi rapidamente escalando para números altíssimos. Foi confirmada a morte de 16 pessoas e um total de 22 a 23 feridos, nove dos quais em estado grave. Entre os falecidos encontrava-se o guarda-freio, uma das primeiras vítimas a ser identificada, e passageiros de pelo menos oito nacionalidades distintas, incluindo cidadãos de Portugal, Reino Unido, Coreia, Canadá, Suíça, França, Ucrânia e Estados Unidos. Imediatamente após o ocorrido, o Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPIAAF) iniciou uma investigação de cariz técnico para apurar as causas do descarrilamento.
O relatório preliminar do GPIAAF destaca a ausência de mecanismos de segurança redundantes, capazes de travar o veículo de forma eficaz. O documento concluiu que o cabo que unia as duas cabinas do funicular cedeu no seu ponto de fixação, na cabina que descia a colina. O guarda-freios da Carris, que se encontrava a bordo da cabina, acionou de imediato os sistemas de travagem pneumático e manual, mas nenhuma destas tentativas surtiu o efeito desejado. O relatório esclarece que os sistemas de travagem do ascensor da Glória não funcionam como um mecanismo redundante e independente, uma vez que dependem, em grande medida, do equilíbrio e da tensão gerada pela cabina que se encontra a subir o trajeto. A rotura do cabo de ligação eliminou este equilíbrio, tornando os travões praticamente inúteis face à descida descontrolada.
A investigação desvendou uma camada mais profunda de negligência, relacionada com a decisão técnica de alterar a composição do cabo. Foi revelado que, há seis anos, o Elevador da Glória teve o seu cabo de sustentação original, totalmente em aço, substituído por um com núcleo de fibra. Especialistas em engenharia mecânica apontam que a nova composição que combina aço com um polímero de rigidez muito diferente é particularmente suscetível à deformação plástica e irreversível ao longo do tempo, devido a fatores como o aperto, o calor e a vibração. Esta cedência gradual do núcleo de fibra terá levado à perda de resistência no ponto de fixação, culminando na rotura fatal.
A Carris, tutelada pela Câmara Municipal de Lisboa, é a proprietária e operadora dos elevadores históricos, detendo a responsabilidade primária pela sua segurança. Contudo, a Carris subcontratou a manutenção dos ascensores da Bica, Lavra e Glória e do Elevador de Santa Justa à empresa MNTC – Serviços Técnicos de Engenharia.
A análise da empresa MNTC revelou uma série de factos preocupantes que levantam sérias questões sobre o processo de seleção e fiscalização da Carris. Durante mais de 10 anos, a MNTC utilizou uma morada fiscal falsa no Parque Tecnológico do Monte da Caparica, em contratos assinados com a Carris, quando na realidade nunca teve instalações naquele local. A administração do parque tecnológico classificou esta utilização da morada como “abusiva”, sublinhando que a MNTC nunca teve qualquer relação contratual com a instituição. Esta revelação compromete o processo de contratação e a integridade da Carris, que aparenta ter falhado na verificação de uma informação tão básica quanto a sede social do seu parceiro.
A tragédia de 2025 não foi um evento singular, mas a culminação de uma série de falhas que se manifestaram em ocasiões anteriores. O mais notável destes incidentes prévios ocorreu a 7 de maio de 2018, quando o Elevador da Glória descarrilou, sem causar vítimas, mas forçando a sua paralisação por cerca de um mês. Na altura, a Carris classificou o incidente como uma “anomalia técnica” e assegurou que o veículo regressaria em “perfeitas condições de segurança”.
A resposta da Carris a este incidente foi de uma criminosa indiferença. A empresa não elaborou qualquer relatório oficial sobre o descarrilamento, e os documentos internos a que a imprensa monopolista teve acesso revelaram que o incidente foi classificado como “sem responsabilidade e descaracterizado”. O incidente foi arquivado pelo velho Estado, e a falta de uma investigação aprofundada ou de um reconhecimento de responsabilidade permitiu que as fragilidades sistémicas persistissem.
A investigação subsequente à tragédia do Elevador da Glória expôs um “vazio legal” que, tal como a falta de manutenção, contribuiu para o cenário de risco. Foi revelado que, ao contrário dos ascensores da Bica e de Santa Justa, o Elevador da Glória nunca foi fiscalizado pela Autoridade Nacional de Segurança Ferroviária (ANSF). Esta lacuna de supervisão não se deveu a uma falha burocrática, mas a uma interpretação criminosa de uma lei mais absurda ainda. A legislação aprovada em 2020 retirou à ANSF as competências de fiscalização sobre “sistemas de transporte por cabo” que, como o Elevador da Glória, foram construídos antes de 1986 e classificados como património nacional. A responsabilidade pela segurança recaia, portanto, exclusivamente sobre a Carris, que não realizava qualquer tipo de fiscalização aprofundada em sua parte.
Esta tragédia não foi um caso isolado mas sim uma falha sistémica, fruto da incompetência do velho Estado que privatiza e precariza tudo o que pode visando o lucro, e das empresas que cuidam de serviços que deveriam ser públicos sem a decência de realizar uma fiscalização aprofundada, cometendo atos criminosos contra o povo como foi este episódio, visando também somente o lucro.
